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O legado silencioso de heróis [04]: João Filgueiras Lima e a Residência José da Silva Netto


João Filgueiras Lima, o Lelé, foi um dos arquitetos brasileiros menos interessados em divulgar seu trabalho para buscar fama. Como resultado, sua obra conhecida pelo grande público é rasa, resumida a seus projetos de hospitais (que não deixam de ter sua importância). No entanto, Lelé é um dos arquitetos cariocas mais impressionantes, com uma pesquisa construtiva realmente interessante.
Sua preocupação com o "fazer", vem desde suas experiências nas habitações para os operários de Brasília, onde se viu em uma saia justa que levaria muitos à loucura. Lelé foi o arquiteto que aprendeu, desde cedo, a concretizar obras, pensar e planejar a arquitetura indissociavelmente do lado financeiro, estético e espacial.
As experiências com pré-fabricação, se não obtiveram o sucesso devido pelo lado administrativo e político, são o resultado de décadas de pesquisa e vontade de elevar a arquitetura em toda sua gama de processos: verdadeiramente se tornar uma produção do espaço.
João Filgueiras Lima nos deixa um legado construído impressionante, não penas de hospitais e prédios administrativos, mas de residências também. Casas tão importantes quanto de seus contemporâneos, como essa que veremos a seguir.
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Post 04:

Residência José da Silva Netto (1976)
[João Filgueiras Lima]



De acordo com depoimento do arquiteto, para Adalberto Vilela, sobre sua conversa com o cliente nas definições para o projeto da casa:

"Mas quando ele me pediu para fazer o projeto da casa, nunca mais eu me esqueço disso, ele disse: "Olha, eu tenho um terreno, que é um terreno maravilhoso, mas eu plantei um pomar." ...E veio me dizendo: "Eu e minha mulher nós queremos... Se você puder fazer um mirante aí pra mim, eu posso ver o lago... Faz aí o que você quiser, minha única reivindicação é ter um mirante lá em cima para eu conseguir ver o lago, 
porque esse pomar está crescendo...." ...Aí eu disse: "Olha Zé, eu não sei, é melhor então você levantar essa casa, fazer uma casa de Tarzan e a gente resolve o assunto." Aí ele gostou da ideia, de forma que o partido surgiu assim, de uma conversa".*

A residência para José da Silva Netto, projetada e construída na segunda metade da década de 1970, em Brasília, pode ser resumida como um grande prisma elevado por apenas 4 pilares, sobre uma topografia cuidadosamente reconstruída.



Implantação da residência.

O contraste entre a regularidade da casa e as curvas do jardim, piscina e torre de circulação (com escada, elevador e caixa d´água) dão o tom de monumentalidade da proposta. É importante destacar, no entanto, que embora a casa se constitua como uma caixa retilínea, o encontro dos robustos pilares com a laje da cobertura acontece em arco.


Enquanto o pavimento térreo livre (logo abaixo do prisma) serve ao abrigo de autos, um volume fechado, que se destaca da projeção da laje atirantada de concreto, guarda a área de serviços, revestido por azulejos de autoria do artista plástico Athos Bulcão.



O grande pé-direito que separa o piso da cota térrea da laje superior (maior que 4 metros de altura) cria enorme destacamento do edifício, resultando em uma casa apartamento, onde todas as atividades principais dos moradores acontecem acima do solo. Os acessos por meio de duas escadas (uma "social" e outra de "serviço") configura-se como solução bastante utilizada na arquitetura brasileira das décadas de 1960 e 1970, remontando às caixas de concreto aparente elevadas da arquitetura paulista, inspiradas pela arquitetura moderna européia, principalmente de Le Corbusier (vide a Residência Roberto Millan).



Pavimento superior.

O acesso pela torre externa leva a uma grande varanda, separada do ambiente interno da casa por um longo pano de vidro. Ao adentrar a residência propriamente dita, uma surpresa: não existem paredes separando os espaços do living. Como em um grande loft, apenas o mobiliário separa os ambientes. Mesmo quando o mobiliário é alto, com estantes e prateleiras, estas não tocam o teto de concreto.
Dividindo a área envidraçada e mais "escancarada" da casa, uma área fechada por alvenarias conformam os ambientes íntimos, com dormitórios, sala de estar e escritório. Os quartos também se servem da grande faixa avarandada, fechada do espaço social.




Os materiais aparentes contrastam, formando planos bem distintos que denominam funções (madeira: piso, teto: concreto, fachadas: vidro/brises). O pé-direito baixo contrasta com a grande altura a ser vencida para se chegar à residência, através de exaustiva subida de escadas.


Utilizando-se de conceitos bastante explorados pela nossa arquitetura, João Filgueiras Lima cria espaços praticamente palacianos, típicos dos projetos modernos da época, onde o concreto era utilizado em toda sua potencialidade (até chegar à sua exaustão).
Aproveitando-se da implantação generosa, cabida a um terreno igualmente grande, os espaços internos se tornam mirantes. A caixa elevada de concreto é permeável, e o papel principal não é da "pedra líquida", mas do vazio. O vazio do piloti, o vazio interno, o vazio do intervalo dos pilares, do grande balanço e tirantes.



> Todas as bonitas fotografias são da fotógrafa Joana França. Para conhecer mais de seu trabalho, não deixe de acessar seu site, clicando aqui.

*Para melhor entendimento do projeto dessa residência, e de outros de Lelé, recomendamos o texto "João Filgueiras Lima e a alegoria da construção", escrito pelos arquitetos Adalberto Vilela e Sylvia Ficher. Para ler o trabalho, clique aqui.

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