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Eles aqui e nós lá


         Em uma postagem de Abril de 2011, com o título "Arquitetura estrangeira no Brasil", comentamos aqui no blog sobre a polêmica em torno de projetos desenvolvidos por escritórios de fora do país. O título, que acabou não sendo explicado corretamente, tinha a pretensão de ser contraditório: dizer que estamos sob uma chuva de arquiteturas estrangeiras no Brasil, é o mesmo que falar das raízes de nossa arquitetura, sejam elas portuguesas, mouras...persas...macedônicas... Estamos na ponta de um processo de influência cultural que remonta a milênios.
         É importante não pensar apenas em territórios, mas no grau de influência continental do processo. A América pré-colombiana guarda cultura e mistérios até hoje em trevas. É magnífico pensar que, antes que qualquer europeu aqui pisasse, já existiam cidades cosmopolitas e reluzentes como Tenochtitlán e estradas transcontinentais como Peabiru (caminho ligando Cusco a São Paulo). O continente americano não tinha antes essa muralha que foi o Tratado de Tordesilhas, as culturas eram compartilhadas e as influências sentidas. A Arquitetura dessa época era diversificada, passando das Ocas até os grandes templos de pedra e ouro do Império Asteca.
         Com a vinda dos povos ibéricos, muito da tradição construtiva se perdeu ou foi assimilada e modificada, reinterpretada até que nos esqueçamos o que veio do que.
         Reclamamos hoje de arquitetos estrangeiros que aqui chegam e de seus consequentes projetos, frutos de um olhar destacado, distante. Ora, assim sempre foi. A questão maior não é o fato de norte-americanos, franceses ou suíços realizarem grandes obras aqui...mas sob qual critério isso acontece.
         Nesse sentido, não existe melhor instrumento de medição do que concursos de projeto. Em ambos os casos apresentados a seguir, não houve concurso (motivo grande de revolta entre profissionais e cidadãos). O objetivo é lançar luz sobre as contradições e preconceitos de dois projetos, que se comparados, apresentam correlação interessante: estão eles aqui, e nós (agora também) lá.


Cidade da Música (Rio de Janeiro)
-Atelier Christian de Portzamparc-


         Em meio a um projeto ambicioso, com o principal objetivo de remodelar a Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, surge incerteza, má-fé e atrasos. Talvez a maior vítima desse projeto seja ele mesmo: um edifício expressivo, tecnicamente desafiador, marcado por administrações municipais confusas, cujo foco era constantemente alterado e outras prioridades atendidas. Basta observar o longo período de uma década que separa a concepção e a inauguração oficial da Cidade da Música.
         Tanto burburinho e desconfiança com o arquiteto responsável, o francês Christian de Portzamparc, apontam a confusão que todos nós fazemos entre conceito e execução.



         A grande estrutura de concreto, maciça e escultural, se eleva acima do terreno, rodeada pelo belo paisagismo de Fernando Chacel. A organização do projeto é interessante: as duas lajes elevadas conformam grandes planos curvos de concreto que abrigam as salas de concerto.










         Da parte do arquiteto e seu escritório, um edifício interessante surgiu. O projeto e sua execução foram ameaçados diversas vezes. Primeiramente pelos Jogos Pan-Americanos, que acabaram por paralisar as obras. Em 2008 o edifício retomou sua construção, com uma pseudo-inauguração que acabou por acelerar e muito a construção (resultando em trabalhos apressados). Em 2009 a obra parou novamente. O motivo foram os gastos absurdos da obra: 500 milhões de reais (em comparação aos 80 milhões do estimado).
         Em meio às polêmicas, Portzamparc manteve-se calmo, até mesmo quando foi chamado a depôr na CPI criada para investigar o gasto da obra.





         É possível que a maior questão por trás do projeto da Cidade da Música, não seja o projeto em si, ou a escolha de um arquiteto francês para sua concepção: Será mesmo necessária uma Cidade da Música, em um edifício desse porte, com tais esforços e gastos?
         Nesse sentido, trabalhos de escritórios como, por exemplo, o Rua Arquitetos, não são mais benéficos para a cidade do Rio de Janeiro, e suas reais problemáticas? Talvez um concurso de projeto pudesse ter aberto tal discussão.

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Novo Museu dos Coches (Lisboa)
-Paulo Mendes da Rocha, MMBB e Bak Gordon Arquitectos-


         Uma das coisas importantes a se dizer sobre esse projeto, é que já existe um Museu dos Coches. Instalado em um antigo edifício da corte portuguesa (antigo Picadeiro Real de Belém), o espaço, que hoje exibe uma pequena parte da coleção de carruagens, é pequeno. O maior e principal problema, portanto (que o novo edifício deve resolver) é aumentar o espaço de exposição.


Imagens do antigo Museu dos Coches

         O terreno do novo museu se localiza em um grande plano da região de Belém, Lisboa, que culmina em uma série de espaços verdes e pontos culturais da cidade: (o Monastério dos Jerônimos, Museu da Marinha, o Padrão dos Descobrimentos, a Torre de Belém, Museu da Eletricidade, etc).
         A solução adotada pela equipe de arquitetos, composta por Paulo Mendes da Rocha, MMBB e o escritório de Ricardo Bak Gordon  (o contato luso dos brasileiros) busca privilegiar e facilitar a topografia do local, elevando do chão parte do museu, e criando ligações por meio de passarelas.






Foto: Luís Raposo Alves

         Os portugueses, e europeus em geral, são ainda mais críticos que nós em ter arquitetos estrangeiros projetando em seu território. A herança arquitetônica estabelecida, muito mais antiga que a nossa, a defesa ao patrimônio histórico e cultural é, em certo sentido, bem diferente do nosso, mais conservador e fulminante. Afinal, a situação urbana de uma cidade como Lisboa, outrora a Houston do século XVI, é ainda mais frenética que de nossos centros urbanos, ainda crianças de 200 anos se comparados às antigas cidades fundadas pelo Império Romano na Península Ibérica. (Lisboa já era conhecida pelo Império Romano no século VIII a.C.).
         Excluída a história por um momento, o que distingue o caso francês no Rio de Janeiro, do brasileiro em Lisboa? Será que Lisboa, assim como o Rio de Janeiro, não tem outras questões mais importantes para serem resolvidas, antes da construção de um grande equipamento cultural?


Foto: Marco Souza






         A proposta inicial previa a construção de 3 prédios para o conjunto:
         - Um edifício elevado do solo por uma estrutura de concreto armado aparente apoiada em apenas quatro pontos, que sustenta um grande prisma de estrutura metálica (cujo vão é vencido utilizando-se grandes vigas treliçadas/vierendeel). Esse edifício abriga toda a administração do museu, bem como biblioteca e restaurante;
         - Anexo ao edifício de administração, ligado por uma passarela elevada, um grande volume/caixa guarda o acervo em exposição, com iluminação controlada e aberturas estratégicas. A relação desse prédio com o térreo se dá de maneira variada, ora tocando o chão (fechado por panos de vidro), ora livre. O apoio do grande volume se dá pilares de seção circular, com bonito desenho e detalhe do encontro entre pilar e viga (similar à Casa Masetti, projeto de Paulo Mendes da Rocha de 1968);
         - O terceiro e mais polêmico dos edifícios inicialmente apresentados, propunha a construção de um prédio com planta circular para estacionamentos (com forma e estrutura similar ao que o arquiteto paulista havia proposto para o projeto do Plano Diretor do campus da Universidade de Vigo). Os lisboetas ficaram particularmente preocupados com esse edifício, alegando que ele destruiria a bela visão do Rio Tejo. Por fim de muitas discussões, ficou decidido que o estacionamento seria locado em um bolsão no térreo, dentro da área, abandonando-se a primeira proposta.
         Mesmo contrariados, os arquitetos insistem que o edifício de estacionamentos seria a melhor solução para a área, já que poderia guardar um volume bem maior de automóveis e servir melhor à região. Por razões óbvias, um estacionamento no subsolo iria aumentar, e muito, o gasto da obra, por se tratar de terreno próximo a um rio.
         Com a polêmica do estacionamento "resolvida", ainda sobraram diversas questões do projeto, mal vistas por muitos lisboetas. Uma das maiores reclamações é a completa falta de concurso para o projeto. A respeito disso, segue trecho da entrevista com Ricardo Bak Gordon, na Revista AU de Fevereiro de 2011:
"O ministro estava prestes a lançar um concurso, mas decidiu que a pessoa certa para projetá-lo era Paulo Mendes da Rocha. Há sempre comentários, obviamente, e em Portugal há muitas obras atribuídas diretamente, onde deveria haver concursos de arquitetura. Mas não é o caso quando se está a falar de um Pritzker Prize como o Paulo Mendes da Rocha - é o caso quando se dá obras importantes na cidade a arquitetos sem um grande currículo. Aí sim é escandaloso."
         O arquiteto português continua, a respeito do novo museu: "Se fosse um trabalho de muita forma e de caprichos, aí poderia haver uma ruptura. Mas a perspectiva arquitetônica desse trabalho é muito nova em Portugal. Eu diria que do ponto de vista intelectual, é uma ruptura. Só que como a maioria das pessoas não tem uma formação que permite ver esse aspecto, vão experimentá-lo naturalmente, não vão sentir que há uma ruptura por que é uma ruptura generosa, que é levantar o edifício do chão."

Foto: Marco Souza

Foto: Marco Souza


Renders do escritório de Nuno Sampaio, que cuidou do projeto da área expositiva

Foto registrada pelo usuário do Skyscrapercity, Paulo Luso

         Apenas o tempo dirá se o novo Museu dos Coches resolverá todas as questões que se propôs a resolver.
         Nós agora também temos arquitetos projetando em solo estrangeiro. Arquiteto do Novo Mundo no Velho Continente...o que muda em projetar lá, em relação a aqui? Paulo Mendes não tem vergonha de arriscar, de pensar, de propor novas relações. Mas será que Lisboa precisa de novas relações? Sim, toda cidade precisa de novas relações. A pergunta certa seria: estariam os europeus prontos e abertos ao novo e contraditório?

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         Nós, certamente, não estamos prontos para o novo e contraditório. Clamamos, como povo advindo da mistura de diversas culturas, possuir mente aberta. Alegamos saber andar agora com as próprias pernas, sem depender de "muletas" de outros povos. Mas que grande besteira tudo isso!
         Se somos assim tão arquitetônicamente impressionantes, por que não resolvemos todos os nossos preocupantes problemas urbanos?
         O que dizer da polêmica do plano de desenvolvimento de Brasília nas mãos de uma empresa de Singapura? A imagem abaixo, do protesto das máscaras de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, circularam o mundo. Queremos concursos, mas durante os anos, cuidamos bem da cidade? Será que é aquela velha história: "ela é minha filha, só eu posso falar e tratar ela mal"?


         Será que existe diferença entre o caso do Museu dos Coches, Cidade da Música e de Brasília? "Dar o desenvolvimento do plano de Brasília a estrangeiros, que absurdo!". "Olha só, agora o Paulo Mendes vai agraciar nossos patriarcas europeus com sua arquitetura sublime, que sortudos!". Quanta besteira.

         No final das contas, independente de nacionalidade (visão preocupante, aliás), o que importa é a leitura dos problemas a serem resolvidos. O desembaraçamento da cidade, a busca por trazer os sentidos de volta aos lugares (como diz sabiamente Angelo Bucci) é que deve ser o foco.
         A nosso ver, projetos vencedores de concursos nem sempre são os ideais. Mas pelo menos existe sempre discussão, a conversa entre diferentes pontos de vista e interpretações dos problemas urbanos. Nesse sentido, palmas, por exemplo, a esforços como da Revista Monolito, que não só apresentou os projetos do concurso para a nova sede do IMS em São Paulo, mas revelou um pouco dos bastidores do concurso, através de um texto intrínseco de Fernando Serapião na sua edição de Abril/Maio de 2012. Por mais que o concurso tenha sido fechado, ao menos gerou uma saudável discussão, registrada em uma publicação, fonte de referência e estudo para as próximas gerações.


         Referências:
         > Revista AU nº 201 - Dezembro de 2010
         > Revista AU nº 203 - Fevereiro de 2011
         > Cidade da Música:
         > Antigo Museu dos Coches:
         > Novo Museu dos Coches:
         - http://www.mmbb.com.br/
         - http://www.nunosampaio.com/
         > Protesto de Brasília:

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